MAX MEREGE APRESENTA: Rogério Sganzerla – o abismo da marginalia cinematográfica - por Cleiner Micceno


No final dos anos 40 e durante os anos 50 bem no período pós guerra a Itália se reconstruía social e culturalmente com o neorrealismo de Rossellini e Vittorio de Sica, com filmes que usavam como cenário a própria realidade, assim como atores amadores e pessoas do povo. E com inspiração nessa estética e nesses preceitos alguns cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Rui Guerra, Carlos Diegues, entre outros, na década de 60, começam a tomar essas idéias e colocá-las em pratica com o velho bordão do Glauber Rocha “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” começa ai saga do cinema novo no Brasil, com obras como “Os Fuzis”, marco inicial de Rui Guerra, e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha, um cinema de esquerda, contestatório, adaptado a realidade brasileira, mas mesmo assim ainda cheio de ranços e de cineastas que com o passar dos anos virariam a casaca, os ideais e suas raízes.

No final dos anos 60 alguns diretores que até então tinham simpatia (ou saíram direto do berço do cinema novo), começaram a contestar a lei estética vigente, tendo como pais espirituais Ozualdo Candeias com seu grande filme “ a margem” de 1967 e o agressivo José Mojica Marins com o genial “a meia noite levarei sua alma”.diferentes do cinema novo com uma estética seminal e agressiva, beirando o surreal, um cinema cru, filosoficamente muito distante do ufanismo intelectual engajado dos cinemanovistas, nascia ai a base do cinema marginal.

A boca do lixo, no centro velho de são Paulo o quadrilátero delimitado pela Duque de Caxias, Timbiras, São João e Protestantes (região da sta Ifigênia e praça da republica) foi o berço do cinema marginal que foi pejorativamente chamado de Udigrudi por Glauber Rocha uma corruptela abrasileirada de UNDERGROUND, a boca que contava com a maior concentração por metro quadrado de prostitutas e bandidos e escroques de todos os tipos, devido a estação de trem ali próxima e onde vieram parar um sem numero de produtoras de filmes, que viabilizou vários diretores iniciantes a começarem suas obras nesse espaço maldito, regado a sexo e malandragem.

E dessa mesma boca saem vários diretores que viriam a formar a nova estética, rompendo com o cinema novo, trazendo um cinema irônico, urbano, e libertário sintonizado com a contracultura e as vezes pagando caro por isso, com obras com dificuldade de serem exibidas, de prejuízos e até mesmo impossibilidade de apresentação de trabalhos prontos por muitos anos, seja pela censura ou não fazer parte de um establishment imposto pelos distribuidores e por puro boicote da censura oficial assim como de certas pessoas descontentes.

É dessa realidade que vem uma leva de novos cineastas como Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci e logicamente Rogério Sganzerla.

Sganzerla é um cineasta sui generis, dono de uma estética forte com influencias de vários cineastas como Samuel fuller , Godard e Orson Welles, em sua obra inicial “ O bandido Da Luz Vermelha” de 1968, ele tem uma relação de amor e ódio ao cinema novo, a quebra da estética formal de narrativa para fazer um filme urbano, mas imerso na cultura nacional, outsider por definição, a primeira frase que se ouve do bandido no filme “quem sou eu” complementada depois por “...quando a gente não pode fazer nada a a gente avacalha, avacalha e se esculhamba”reflete essa idéia de estar fora de uma posição definida dentro de um conceito pré concebido, uma pergunta existencialista que permeia toda obra desse cineasta que sempre esteve contra a maré mas se mantendo sempre fiel a seus ideais estéticos e filosóficos.

Eu acho que o cinema é uma atividade produtiva: manter a língua, a imagem do nosso país” diria sganzerla pouco antes de falecer em 2004, e ele fez isso com maestria no bandido. Usando a linguagem coloquial espontânea dos personagens que surgem desse submundo das entranhas de são Paulo dos anos 60

as frases que marcam o filme são afirmações metafóricas sobre a realidade social e política brasileira a beira do recrudescimento da censura “... o terceiro mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra” é repetido a exaustão, o mosaico que o bandido forma com, políticos coronelistas , pela força repressiva policial, pela fauna que circula pela metrópole suja, fazem parte desse microcosmo social brasileiro sem muita perspectiva, que é agravada pela imprensa sensacionalista marcada pela narração renitente, que se desenvolve durante o filme, uma relação anárquica com os valores instituídos, dando destaque a marginalia e a vida no fio da navalha.

Sganzerla continua a saga dos desvalidos e amorais em “ a mulher de todos” filme, que ele depois de inteiro editado teve de recorrer a restos de cenas pra conseguir que o filme atingisse o tempo necessário de um longa metragem. O filme tem sua mulher Helena Ignez no papel principal de Ângela carne e osso a inimiga numero um dos homens, sganzerla vai fundo na sátira aos valores burgueses e vazios da sociedade em plena decadência, com suas relações efêmeras e o vazio atrás das mascaras sociais.

Já em 1970 ele vai para o rio onde com Julio Bressane formam a bel-air filmes , dessa época datam “sem essa aranha” , “betty bomba, a exibicionista” e o “Copacabana mon amour” que tem a desglamourização da imagem carioca de cartão postal como seu principal tema, o que Sganzerla faz com uma ironia certeira

o cineasta passa por uma fase complicada ficando sem lançar nenhum longa de 1971 até 1977 quando termina o “abismu” filme enigmático feito com recursos próprios, com Norma Bengell, José Mojica Marins, wilson grey e Jorge loredo, o filme passa por uma maratona para poder ser lançado, norma bengell vendeu um apartamento para que fosse concretizada a produção do filme de sganzerla que sofre uma espécie de repressão velada por parte dos exibidores, ele fala sobre isso em 1981 quando o filme já teria conseguido aval da censura mas não conseguia salas de exibição:

o que fazer diante do arbítrio de incompetência treinada? Eu, que não sou burro, sempre soube que existe um boicote contra meus filmes. Falei demais? Saibam que por idealismo nunca calei-me diante do fato de intuir precocemente as coisas. Serei tão importante e ameaçador assim? Se fui considerado dos mais criativos realizadores do País, por que cuidadosamente não deixam ir às telas... ou seja tenho filmes arquivados há dez anos... que tal ? Não seria um boicote armado pelos intelectuais de araque?”

Esse não seria o ultimo embate de sganzerla com dificuldades de lançar um trabalho.

A obsessão pessoal de sganzerla pela vinda de Orson Welles ao Brasil em 1942 para gravar “it´s all true (é tudo verdade)” rendeu uma série de trabalhos sobre o tema , a garimpagem sobre isso começa ainda em 1980 e tem como resultado: “nem tudo é verdade” de 1986, “A linguagem de Orson Welles” curta de 1989 e “É Tudo Brasil” de 1997 e o ultimo trabalho de sganzerla, já fragilizado com um tumor no cérebro, “o signo do caos” de 2003 um anti-filme, com questionamentos profundos sobre o fazer cinema no Brasil, com mistura de drama e thriller policial e ainda as ultimas partes sobre welles, foi mais uma maratona árdua para conseguir apoio e lançar o filme depois de pronto. Concretizado o tão esperado lançamento e conseguiu o premio candango de ouro por seu filme no 36° festival de cinema de Brasília mas por estar debilitado não conseguiu ir até a premiação.

Morreu no dia 9 de Janeiro de 2004, vítima de um tumor no cerébro e deixando na cultura nacional um vácuo difícil de ser preenchido.


Quem tiver de sapato não sobra






Filmografia de rogério sganzerla


Comentários

Bruno Rodrigues disse…
Uma verdadeira aula de história! Parabéns Cleiner!

E que venham as próximas colaborações!!!

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